sábado, 19 de dezembro de 2015

Conto "A Noite de Natal" de Sophia de M.B. Andresen


O amigo
Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à volta.
No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito antigo, uma cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do cedro que Joana brincava. Com musgo e ervas e paus fazia muitas casas pequenas encostadas ao grande tronco escuro. Depois imaginava os anõezinhos que, se existissem, poderiam morar naquelas casas. E fazia uma casa maior e mais complicada para o rei dos anões.
Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos. E, às vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia e que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas. Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu jardim.
E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros meninos. Só sabia estar sozinha.
Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de Outubro.
Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um garoto. Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam como duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do Outono. O coração de Joana deu um pulo na garganta.
— Ah! — disse ela. E pensou:
«Parece um amigo. É exactamente igual a um amigo.» E do alto do muro chamou-o:
— Bom dia!O garoto voltou a cabeça, sorriu e respondeu: — Bom dia!
Ficaram os dois um momento calados.
Depois Joana perguntou:
— Como é que te chamas?
— Manuel — respondeu o garoto.
— Eu chamo-me Joana.
E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio. Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta. Até que o garoto disse: — O teu jardim é muito bonito.(...)
A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava cheio de paz e de frescura. Às vezes do alto de uma tília caía uma folha amarela que dava voltas no ar.
Joana foi buscar pedras, paus e musgo e começaram os dois a construir a casa do rei dos anões.
Brincaram assim durante muito tempo.
Até que ao longe apitou uma fábrica. — Meio-dia — disse o garoto — tenho de me ir embora.
— Onde é que tu moras?
— Além nos pinhais.
— É lá a tua casa?
— É, mas não é bem uma casa.
— Então?
— O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma casa. — Mas à noite onde é que dormes?
— O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali também. — E onde é que brincas?
— Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as flores. Pode-se brincar em toda a parte.
— Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para brincar comigo.
E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua. Joana esperava-o empoleirada em cima do muro. Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombra redonda do cedro.
E foi assim que Joana encontrou um amigo.(...)


A festa
Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal.
E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada.
Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os copos.(...)
Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas.
Joana deu uma volta à roda da mesa. (...) As velas estavam acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma festa. Era o Natal.
Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes.(...)
Então Joana foi à cozinha ver a cozinheira Gertrudes, que era uma pessoa extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem se cortar, e mandava em tudo, e sabia tudo. Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia.
A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os dois perus do Natal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos perus, muito esticada sobre o peito recheado, já estava toda doirada.
— Gertrudes, ouve uma coisa — disse Joana.
A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os perus.
— O que é? — perguntou ela.
— Que presentes é que achas que eu vou ter?
— Não sei — disse Gertrudes —, não posso adivinhar.
Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e por isso continuou a fazer perguntas.
— E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?
— Qual amigo? — disse a cozinheira.
— O Manuel.
— O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.
— Não vai ter presentes nenhuns!?
— Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.
— Mas porquê, Gertrudes?
— Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.
— Isso não pode ser, Gertrudes.
— Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.
Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era «assim mesmo».
Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo.(...)
Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha. De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:
— Já chegaram os primos.
Então Joana foi ter com os primos.
Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram todos para a mesa.
Tinha começado a festa do Natal.(...)
E vendo tudo isto Joana pensava: — Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa para toda a gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também tem presentes.
E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão alegre como antes.
O jantar do Natal era igual ao de todos os anos.(...) Um dos primos puxou-a por um braço.
— Joana, ali estão os teus presentes.
Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas. À sua volta todos riam e conversavam.
Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham tido, falando ao mesmo tempo.(...)
Até que alguém disse: — São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são horas de as crianças se irem deitar.
Então as pessoas começaram a sair.
O pai e a mãe de Joana também saíram.
— Boa noite, minha querida. Bom Natal — disseram eles.
E a porta fechou-se.
Daí a um instante saíram as criadas.
A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos para a Missa do Galo, menos a velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar as panelas.
E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a Gertrudes.
— Bom Natal, Gertrudes — disse Joana.
— Bom Natal — respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um momento. Depois perguntou:
— Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?
— O que é que eu disse?
— Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não têm presentes.
— Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres.(...) — Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.
— Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha.
Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava: — Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.
E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de animais.
«Que frio lá deve estar!», pensava ela.
«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.
«Que triste lá deve estar!», pensava.
E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um burro.
— Amanhã vou-lhe dar os meus presentes — disse ela. Depois suspirou e pensou:
«Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.»
Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.
Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite.
«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.» Foi ao armário tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros.(...)
Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.

A estrela
Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a olhavam e a ouviam como pessoas.
«Tenho medo», pensou ela.
Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.
Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um atalho entre dois muros. E no fim do atalho encontrou os campos, planos e desertos. Ali, sem muros nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e redonda e toda brilhante. O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via- se a massa escura dos pinhais.
«Será possível que eu chegue até lá?», pensou Joana. Mas continuou a caminhar.(...)
«Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela.
E levantou a cabeça.
Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava.
«Esta estrela parece um amigo», pensou ela.
E começou a seguir a estrela.
Até que penetrou no pinhal.(...)
Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.
«Será um lobo?», pensou.
Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgir entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.
«Será um ladrão?», pensou. Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto azul todo bordado de diamantes.
— Boa noite — disse Joana.
— Boa noite — disse o rei. — Como te chamas?
— Eu, Joana — disse ela.
— Eu chamo-me Melchior — disse o rei. E perguntou:
— Onde vais sozinha a esta hora da noite?
— Vou com a estrela — disse ela.
— Também eu — disse o rei —, também eu vou com a estrela.
E juntos seguiram através do pinhal.
E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as sombras da noite.
Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande manto vermelho coberto de muitas esmeraldas e safiras. — Boa noite — disse ela. — Chamo-me Joana e vou com a estrela.
— Também eu — disse o rei —, também eu vou com a estrela e o meu nome é Gaspar.
E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras azuis e os pinheiros escuros.
Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto verde bordado de pérolas. A sua cara era preta. — Boa noite — disse ela. — O meu nome é Joana. E vamos com a estrela.
— Também eu — disse o rei — caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar.
E juntos seguiram os quatro através da noite.
No chão, os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa murmurava entre as árvores e os grandes mantos bordados dos três reis do Oriente brilhavam entre as sombras verdes, roxas e azuis.
Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E sobre essa claridade a estrela parou.
E continuaram a caminhar.
Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana viu um casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem sombra, nem tristeza. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos anjos o iluminava.
E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas entre a vaca e o burro e dormia sorrindo.
Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra.
E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar.
Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel.
— Ah — disse Joana — aqui é como no presépio!
— Sim — disse o rei Baltasar — aqui é como no presépio.
Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes.

Editora "Figueirinhas" (texto com supressões)
As ilustrações são de Júlio Resende

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